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Cláusulas de No-Shop e Go-Shop

Atualizado: 1 de fev. de 2022





Karina Goldberg, Paula Miralles de Araujo, Ítalo Godinho da Mota Martins


O uso de cláusulas criadas pela experiência estrangeira contribui para que a prática dos contratos de M&A no Brasil se mantenha atualizada aos dinâmicos padrões internacionais. Ao mesmo tempo, no entanto, não são raras as disputas criadas por conflitos interpretativos entre partes com diferentes tradições jurídicas e pela dificuldade de se adequar cláusulas criadas naquele contexto às regras de direito brasileiro.


Em outubro de 2020, foi noticiado o primeiro uso conhecido de cláusula de go-shop em uma aquisição societária no país. A operação se referia à venda das atividades brasileiras da Laureate Internacional Universities, grupo educacional americano com mais de 260 mil alunos matriculados, para a Ser Educacional pela quantia aproximada de 5 bilhões de reais.


As partes firmaram acordo de transação (Transaction Agreement) que franqueava à Laureate a possibilidade de, após o signing, por um período de tempo determinado antes do fechamento da operação, buscar no mercado ofertas concorrentes para a compra da companhia. Caso a vendedora considerasse possuir uma proposta considera superior nos termos do contrato, dentro do prazo de 31 dias, ela deveria notificar a compradora para que essa pudesse, a seu critério, exercer o direito de cobrir a oferta concorrente por meio da adequação dos termos do acordo de transação de modo a torná-lo mais vantajoso. Caso a compradora optasse por não exercer esse direito, a vendedora poderia rescindir o acordo original pagando uma multa de R$ 180 milhões, sendo a multa para as demais hipóteses de rescisão fixada em R$ 400 milhões.


No contexto dessa transação, efetivamente foi apresentada uma proposta concorrente por um terceiro, a Ânima Educação, empresa brasileira listada em bolsa e com cerca de 140 mil alunos matriculados. Entendendo ter obtido proposta superior à original, a Laureate ativou os mecanismos da cláusula de go-shop para que a Ser pudesse exercer o direito de igualar a proposta concorrente – dando início à disputa entre as partes.


A Ser alegava que a Laureate não seguiu o rito contratual do mecanismo da cláusula go-shop e que a proposta concorrente da Ânima não poderia ser qualificada como superior à proposta original, segundo os termos do contrato. Na forma do acordo de transação, para que uma proposta pudesse se qualificar como superior, ela deveria ser – em termos financeiros, legais e regulatórios – mais vantajosa para a vendedora e não poderia estar sujeita a “financing contingency” (uma contingência de financiamento) – termo cuja definição as partes também disputavam.


Alegava a compradora que a proposta concorrente não atendia aos requisitos contratuais para ser considerada uma proposta superior, pois parte da estrutura de pagamento proposta pela Ânima (cerca de R$ 3,334 bilhões a serem em recursos imediatamente disponíveis) dependia da concretização de futura emissão de debêntures, o que representava uma contingência de financiamento, vedada em contrato, que também gerava incerteza em sua concretização. Além disso, tendo em conta o pagamento em caixa, ativos, sinergias e outros aspectos, a Ser considerava que o valor global de sua proposta (aproximadamente R$ 5,5 bilhões) era superior ao valor global da proposta da Ânima (aproximadamente R$ 4,7 bilhões), se considerados os mesmos aspectos.


A vendedora, por outro lado, alegava que o rito contratual fora seguido corretamente, e que, segundo decisão de seu Conselho de Administração, a proposta apresentada pela Ânima seria mais vantajosa nos termos do contrato, em detrimento daquela oferecida pela compradora original. Ainda segundo a vendedora, a emissão de debêntures para obtenção de parte dos valores da proposta não representaria uma contingência de financiamento.


A disputa entre as partes foi rapidamente encerrada por meio de acordo amplamente divulgado na imprensa.


Embora a discussão sobre o mecanismo contratual do go-shop tenha sido objeto de atenção no Brasil somente em 2020 e ainda necessite maiores conceituações, essa metodologia de precificação está em uso nos Estados Unidos pelo menos desde 2004, quando da compra da US Oncology pela firma de private equity americana Welsh, Carson, Anderson & Stowe, e na Europa, pelo menos desde 2009, no acordo entre CVC e Barclays Global Investors pela compra da iShares.


Em breve síntese, a análise desses mecanismos nos EUA revela que operações de M&A podem ter por origem dois distintos processos de identificação de compradores e determinação de preços. No primeiro desses processos, a vendedora realiza uma sondagem de mercado prévia, via de regra, contratando os serviços de bancos de investimento para que encontrem possíveis interessados em adquirir a empresa. Os contatados que tenham interesse em dar seguimento às negociações assinam acordos de confidencialidade (NDAs – non-disclosure agreements) a fim de receber informações da target que não estão publicamente disponíveis para o mercado. Por fim, apresentam-se as propostas e a vendedora assina o contrato com o ofertante que apresentou melhores condições, seguindo-se, depois de atendidas as condições precedentes, do fechamento da operação.


A via de proteção do negócio tradicionalmente adotada no contexto dessas transações, geralmente em favor dos compradores, é a chamada cláusula de no-shop, por meio da qual, após o signing, a target e/ou a empresa vendedora não podem estabelecer contato com outros potenciais compradores em busca de novas ofertas, ou somente o podem fazer em condições bastante limitadas. Em conjunto com essa disposição, é praxe prever multas de rescisão para caso a operação não venha a se concretizar, as quais costumam variar entre 3 e 6% do valor do negócio.


A via de proteção do negócio tradicionalmente adotada [...] é a chamada cláusula de no-shop, por meio da qual, após o signing, a target e/ou a empresa vendedora não podem estabelecer contato com outros potenciais compradores em busca de novas ofertas, ou somente o podem fazer em condições bastante limitadas.

As cláusulas de no-shop podem ser subdivididas entre (i) aquelas que permitem a vendedora negociar com um terceiro interessado caso essa oferta não tenha sido ativamente solicitada pela vendedora e (ii) uma versão mais severa, que não permite à vendedora (nos EUA, por vezes, representada pelo próprio conselho de administração) negociar com um terceiro em hipótese alguma – a chamada cláusula de no-talk.


O segundo processo para determinação de preço e negociação com compradores é particularmente comum no contexto de deals envolvendo fundos de private equity e podem funcionar em favor dos compradores ou vendedores. Trata-se da cláusula de go-shop, segundo a qual o vendedor pode ativamente solicitar outras ofertas de terceiros durante, tipicamente, 30 e 60 dias. Nesses deals, é comum que o potencial comprador aborde a companhia target e, oferecendo um preço inicial satisfatório, as partes condicionem que o signing da operação se dê antes de uma sondagem do mercado por outras propostas. Nesses casos, após o signing é que se realizará o market check resultante da apresentação de outras potenciais propostas, e o preço ofertado pelo comprador original servirá de piso para as ofertas seguintes.


Trata-se da cláusula de go-shop, segundo a qual o vendedor pode ativamente solicitar outras ofertas de terceiros durante, tipicamente, 30 e 60 dias.

Com o lapso deste prazo, a cláusula de go-shop se torna uma cláusula de no-shop, impedindo futura solicitação ativa de propostas concorrentes. Na vigência do go-shop, é comum que a multa rescisória seja a metade daquela prevista para o desfazimento da operação em outras hipóteses, pelo que gira entre 1 e 3% do valor do negócio.


A distinção entre as cronologias pode ser ilustrada da seguinte maneira:



Atualmente, a maioria das cláusulas de go-shop analisadas pela doutrina americana garante ao comprador original o direito de cobrir a oferta apresentada pelo comprador que surgiu durante o período de sondagem no mercado da empresa target. Esses são os chamados matching rights e costumam possuir rito contratual detalhado a respeito de tempo e forma de exercício, matéria particularmente propícia a originar litígios, como no caso da Laureate.


O uso de cláusulas como essas parece especialmente compreensível no contexto de um deal como o da Laureate, no qual o acordo de transação foi firmado entre uma empresa brasileira e uma incorporada no estado americano de Delaware – jurisdição na qual cláusulas de go-shop são amplamente utilizadas há cerca de duas décadas, com relevantes implicações na satisfação dos deveres fiduciários dos administradores das empresas envolvidas na operação, tanto a compradora como a vendedora.


No Brasil, sem dúvidas ainda é necessário estabelecer bases doutrinárias e conceituais a respeito dessas cláusulas, seus usos, limites e potenciais controvérsias delas decorrentes à luz da legislação e da prática nacional, assim como das características do mercado, motivo pelo qual os autores conduziram uma investigação aprofundada, em artigo acadêmico a ser publicado em breve.



 

Karina Goldberg é sócia de Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados. Membro da Comissão de Arbitragem e ADR da CCI – Câmara de Comércio Internacional. Membro do Conselho da Câmara de Arbitragem Internacional de Singapura (SIAC). Membro do IBA Unidroit Working Group. Membro do IBA Subcommittee on International Arbitration Case Law. Mestre em Direito Privado Europeu pela Universidade de Utrecht (2003) e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001). karina.golberg@fcdg.com.br.


Paula Miralles de Araujo é sócia de Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados. Mestre em Direito pela University of Pennsylvania Law School (2019). Mestre em Direito Civil (2015) e Bacharel em Direito (2009) pela Universidade de São Paulo – Largo São Francisco. paula.miralles@fcdg.com.br.


Ítalo Godinho da Mota Martins é Fundador e Diretor-Presidente do Center for M&A Studies. Estagiário de Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados. Graduando em Direito na Universidade de São Paulo – Largo São Francisco. italo.martins@fcdg.com.br.

 

Quaisquer opiniões veiculadas nessa publicação não necessariamente refletem e não vinculam o Center for M&A Studies ou o Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados, tendo propósito meramente educacional e informativo, não devendo ser compreendidas como aconselhamento jurídico.


 

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